SAYLA #01




Sayla corria o máximo que podia, mas a sombra corria ainda mais rápido e, a cada instante, se aproximava da jovem de cabelos vermelhos. Tropeços e mais tropeços em pedras imaginárias evidenciavam sua busca pela vida. Ela não sabia por quanto tempo ainda conseguiria correr dentro daquele enorme túnel. Seus gritos eram facilmente confundidos com gemidos de dor. Não pensava em nada além de fugir de seu carrasco. De repente, algo que parecia uma mão fria tocou seu rosto, mas Sayla não parou de correr. Corria em zigue-zague pelo enorme buraco que parecia não ter fim. A misteriosa mão era agora como uma parte de seu rosto. Segundos depois, aquilo que antes parecia acariciá-la passou a apertar sua face violentamente. A garota balançava a cabeça desesperada, mas não parava de correr. Em mais um de tantos sinais de desespero, levantou a mão direita e a levou ao rosto, tentando retirar aquela “coisa” de lá. A dor era insuportável. Sayla não aguentava mais aquilo em sua face e, em um ato impensável, cravou as unhas pintadas de preto na mão e a puxou, mas estava fraca demais e não teve êxito. Não queria olhar para trás para ver a quem pertencia a gélida mão. Foi então que uma pequena luz surgiu, revelando o que parecia ser o final da caverna. A famosa luz no fim do túnel estava a poucos metros de distância. Mesmo sabendo que aquilo podia não significar salvação, ela sorriu sem entender o porquê. Quando a “coisa” se mexeu em seu rosto, Sayla não pensou duas vezes: cravou as duas mãos nela e puxou com uma força que nem sabia que tinha, mas novamente não teve êxito. Segundos depois, a mão desapareceu. Sayla sabia que não estava salva, mas não se importava, pois a luz estava ali, e naquele momento qualquer sinal de esperança era reconfortante. Porém, o alívio foi passageiro: a misteriosa mão voltou a tocar seu rosto suavemente, como na primeira vez, e com uma de suas garras cravou o globo ocular da garota, puxando-o com violência sem igual. Sayla não parou. – ARGAHHHHHHHHHHHHHHHHH!!! Um grito desesperado quebrou facilmente o silêncio da caverna. O sangue espirrava do local onde, até pouco tempo atrás, estava seu olho azul. Lembrou de quando era pequena e era elogiada pelos olhos. Sua mãe dizia que ela havia herdado a cor dos olhos do pai e constantemente a chamava de “a garotinha do papai”. O sangue espirrava enquanto ela pressionava a enorme ferida com as duas mãos, gritando de dor. Sua mente pedia que cedesse ao cansaço, mas seu corpo, naquele momento, não desistia. Sayla sabia que, se parasse ali, seria seu fim — e perderia muito mais do que apenas um olho. A luz parecia mais perto, mas aquilo que a perseguia também estava. Sayla viu a luz e chorou. Imaginava que essa fosse a mesma visão que um bebê tem ao sair do ventre da mãe. Tomou coragem e olhou para trás antes de sair da caverna, mas não viu ninguém. Estava tão feliz por ter se livrado da monstruosidade que nem notou a falta de chão sob seus pés. Despencou de uma altura incalculável e, enquanto caía, a dor em seu olho parecia anestesiada. Não sentia mais dor, nem ódio pelo carrasco. Lembrava-se de sua mãe e tentava, com muito esforço, lembrar-se do pai. Talvez fosse um presente de Deus não sentir mais nada, pois sabia que a morte se aproximava. Seus cabelos vermelhos balançavam tanto com o vento que pareciam ter vida própria. Aos poucos, foi perdendo a consciência sem ver sua vida passar diante de seus olhos, como havia imaginado. Seu corpo tocou violentamente a superfície do rio no fundo do abismo. Naquele momento, Sayla estava com vários ossos quebrados, mas a morte ainda não havia chegado. Aos poucos, a correnteza arrastou seu corpo pequeno e frágil em direção à margem. Do céu, Amaterasu, a Deusa do Sol, sentiu-se triste, e uma lágrima escorreu por seu rosto. O motivo da tristeza, a Deusa desconhecia, mas sentia que a resposta estava na terra. Em um raio de luz, a Deusa e sua criada chegaram à terra. Confusa, Amaterasu olhou para os lados e contemplou a garota de cabelos de fogo deitada na margem do rio de águas cristalinas. Suas vestes estavam imundas, o sangue no rosto a tornara irreconhecível. A Deusa ordenou que sua criada carregasse o corpo até uma gruta próxima. Ama, como a Deusa gostava de ser chamada, pediu à criada que se retirasse e a deixasse sozinha com a jovem. Sayla continuava inconsciente. ... Era manhã de sábado e, como de costume, Sayla dormia até tarde. Seu pijama era azul com pequenas montanhas estampadas lado a lado. Seu quarto parecia impecável: tudo era arrumado de maneira simétrica, desde os CDs sobre a cômoda até os pôsteres de cantores famosos de jazz na parede, refletindo o gosto peculiar da garota pelo gênero. Emily, sua amiga de infância, estava plantada à porta de casa esperando a jovem acordar. Emily tinha cabelo castanho preso por uma fita azul e usava um casaco aberto com uma blusa listrada por baixo, saia branca, calça legging preta e botas que iam até o joelho — o maior destaque do visual. Sayla despertou com batidas na porta do quarto. Era sua mãe, Lilian, uma senhora de cabelos ruivos e olhos cor de avelã que sempre tinha um belo sorriso no rosto. Sayla adorava ver o sorriso da mãe. Desde a morte do pai, as duas se tornaram inseparáveis e, por isso, a jovem evitava se meter em confusões para não causar transtornos a ela. Não lembrava direito, pois era muito nova na época, mas recordava claramente a expressão de dor da mãe quando soube da morte do pai — e essa era uma expressão que Sayla não suportaria ver novamente. – O sorriso dela era o meu melhor despertador – pensou Sayla, retribuindo-o com outro. – Filha, Emily está na porta te esperando – disse a mãe, balançando a cabeça. – Às vezes acho que ela não sabe que temos campainha – disse Sayla, esfregando os olhos e bocejando. Sayla abriu a janela ao lado da cama e colocou metade do corpo para fora. Respirou profundamente o ar fresco de outono e se espreguiçou, esticando os braços o máximo que pôde. Ao olhar para baixo, viu Emily encostada na caixa de correio. As duas se olharam e sorriram. – Emily! Emily! Não se preocupe, não me esqueci do nosso compromisso! – gritou Sayla, para que Emily pudesse ouvi-la. A garota fechou a janela, saltou da cama e entrou no banheiro. Ao sair, pegou uma muda de roupas, observou de longe tentando escolher o que vestir e combinou uma bata bege com um casaco azul-escuro e uma calça jeans. Aprontou-se e desceu as escadas correndo. Na cozinha, pegou uma torrada que estava em um prato sobre a mesa, bebeu o café em um gole só, despediu-se da mãe com um beijo e saiu. Emily ficou do lado de fora o tempo todo. Por algum motivo que Sayla desconhecia, Emily nunca havia passado da porta de entrada. Ela já a convidara incontáveis vezes para dormir em sua casa, mas Emily sempre inventava uma desculpa esfarrapada e mudava de assunto. – Nossa... quanta demora, hein? – disse Emily, levantando-se e limpando a poeira imaginária das roupas. – Foi mal, Emily. Acabei dormindo até tarde – disse Sayla, claramente envergonhada. – Sayla Smith, você é única. – Digo o mesmo, Emily Jones. As duas riram juntas e seguiram caminhando. Estava um dia lindo e o sol brilhava muito. Sayla adorava o outono em Londres; tudo era simplesmente mágico para ela. A ocasião a fez lembrar de uma foto no álbum da família: tinha cinco anos e o pai a carregava nos braços em uma tarde de outono no parque, enquanto a mãe estava ao lado deles. – Vamos, Sayla. Ainda tá dormindo? – disse Emily, demonstrando pressa. – Espera por mim, Amy. Sayla estava tão distraída em seus pensamentos que nem notou que já estava próxima à biblioteca. A jovem adorava ir à biblioteca com Emily. Lá, além de estudarem, as duas podiam conversar sobre tudo que gostavam. Sayla já tinha 16 anos, mas nunca teve muitos amigos nem era popular. Emily era sua única amiga. As duas se conheceram logo depois da morte do pai de Sayla e, desde então, tornaram-se inseparáveis. As garotas passaram horas na biblioteca. Ao final da tarde, estavam exaustas. Não era o final de semana mais divertido de todos, mas Sayla adorava estar ali. – Sayla, você não está com fome? – perguntou Emily, esperando ouvir um "sim" da amiga. – Claro, vamos comer algo – respondeu Sayla, consentindo. – Sério, acho que poderia comer um búfalo desse tamanho – disse Emily, abrindo os braços e gargalhando. As duas caminharam em direção a uma praça próxima à biblioteca. A noite chegava, e as luzes da cidade começavam a aparecer timidamente. Após o lanche, decidiram voltar para casa. Sayla se despediu da amiga, que seguia em caminho oposto, e prosseguiu. Ao chegar a uma rua a poucos minutos de seu destino, parou na faixa e esperou o sinal fechar. Assim que fechou, decidiu atravessar, quando, de repente, viu um carro vindo em sua direção. Tentou correr, mas as pernas não obedeceram. Enquanto os grandes faróis do veículo se uniam em uma luz amarela intensa, só conseguia pensar na mãe. Um suspiro profundo. – Aonde estou?! – Sayla gritava a mesma pergunta repetidas vezes. Olhava para os lados e gritava ainda mais. Era noite e ela estava em algo que parecia uma caverna. Gotas de chuva caíam sobre seu corpo. Gritava e gritava desesperada, até que avistou uma mulher que a fez perder totalmente a fala. Era a figura mais linda que já tinha visto em seus dezesseis anos. A mulher usava uma coroa ornamentada e roupas vermelhas com desenhos de pétalas de cerejeira. A luz que emanava se confundia com a do luar refletido no rio atrás dela. – Minha querida, que bom que acordou – disse a mulher, com uma voz tão suave que fez Sayla recuar um pouco sobre a pedra fria. – Onde estou? Quem é você? – perguntou a jovem, sem entender nada. – Sou a luz, jovem Sayla. A mulher falava com tanta veracidade que Sayla não duvidou por um instante. – Você estava deitada na margem do rio. Eu te achei e pedi para que uma de minhas criadas a trouxesse para cá. Você estava quase morta, a maioria dos seus ossos estava quebrada. Eu tratei de você e salvei sua vida. – E o que eu estava fazendo... – murmurou Sayla, enquanto flashes inundavam sua mente. Ela lembrou como acordou em uma caverna escura e foi perseguida por criaturas que pareciam saídas do inferno. Lembrou da saída... e do toque em seu rosto. – Não! Não! Não pode ser verdade. A garota levou a mão ao olho e tocou algo que parecia uma atadura, entrando em desespero. – Sinto muito por isso, jovem Sayla. Não consegui fazer nada em relação ao seu olho – disse a mulher, visivelmente triste. Sayla chorou por alguns segundos até se calar. Ela não estava entendendo nada, não sabia como tinha chegado ali nem o que era aquela criatura. Só pensava na mãe preocupada e aflita. – Você sabe como eu vim parar aqui, moça? – soluçou Sayla. – Não, eu não sei – a mulher parecia desapontada consigo mesma. – Se eu ouvi direito, você disse que eu estava com vários ossos quebrados. Há quanto tempo estou aqui? E por que não sinto dor alguma? – perguntou Sayla, agora olhando fixamente para ela. – Você está aqui há três dias – afirmou a mulher, aproximando-se como se flutuasse sobre o chão de pedra. – Espera. Se eu estou aqui há apenas três dias, como já estou curada? – tudo parecia muito confuso. – Simples. Desta forma. A mulher estendeu a palma da mão e, como mágica, fez brotar uma chama tão intensa que iluminou a caverna como uma tocha. Sayla saltou para o canto da pedra. Aquilo era impressionante. Nunca tinha visto nada igual. Lembrou-se de um show de mágica que assistiu com a mãe quando criança, mas em nenhum momento achou que fosse truque barato. – O fogo é mágico, minha jovem. Os humanos ainda desconhecem o potencial medicinal do fogo – disse a mulher, enquanto a chama refletia em seus olhos negros. Com a luz, Sayla pôde observar melhor seu rosto: oriental, sem maquiagem, pele como fina porcelana, cabelos negros compridos, vestes que lembravam o filme "Memórias de uma Gueixa". – Santo Deus. Como você fez isso? – perguntou, espantada. – Como devo dizer isso... A mulher pensou por um instante e então disse: – Eu sou uma Deusa! A afirmação pareceu saltar de seus lábios, deixando a jovem paralisada. Sayla acreditou. Era quase como se sua vontade não fosse mais sua. Revirou os olhos e se sentiu tonta. Seus cabelos vermelhos tocaram a pedra úmida enquanto olhava para o teto escuro. – Você é uma Deusa mesmo??? – mal acreditou no que perguntava. – Espera. Por que eu acredito em você!? – gritou, como se a mulher estivesse a metros de distância. – Eu devo estar louca. Acredito em tudo o que você diz! Isso não é normal, moça! – Receio não ter muito tempo para responder todas as suas perguntas, minha querida – disse a Deusa, virando-se e olhando para o céu. – Você não está pensando em me deixar sozinha aqui, está? – perguntou Sayla, levantando-se com dificuldade. Era estranho caminhar. Sentia-se como um bebê dando os primeiros passos: desengonçada, cambaleante, mas conseguiu se aproximar da mulher. Um arrepio percorreu sua espinha. – Tá legal, você me ajudou com seus poderes mágicos e agora vai embora porque esqueceu de alimentar o seu gato ou coisa do tipo? – disse, sem intenção de ironizar, mas desesperada para ir embora. A entidade, que estava preocupada, sorriu de imediato ao ouvir isso. Balançou a cabeça, fechou os olhos pensativa e, segundos depois, encarou-a. – Sayla, me escute com atenção: você não está mais na sua era. De alguma forma, foi deslocada no tempo – disse a mulher, olhando-a diretamente. – Deslocada no tempo? Mas isso não é possível... – Eu não tenho muito tempo. Estou aqui sem permissão – a preocupação voltou ao rosto da mulher. – Abra a boca e me mostre sua língua. Seja rápida. – A minha língua? Não sabe que é feio mostrar a língua para os mais velhos? – disse Sayla, cruzando os braços. – Não temos muito tempo... – Já que você quer... Aaaaaaaaa... A mulher estendeu a mão e fez surgir uma chama vermelha, mais transparente que a anterior. Sayla arregalou o olho quando a chama se aproximou de seu rosto. Tentou recuar, mas o corpo não obedecia. Estava paralisada. Um clarão vermelho a ofuscou. A língua ardeu. Em um movimento rápido, a mulher cessou a chama. – Pronto. É tudo o que posso fazer por você esta noite – disse a Deusa, satisfeita. – Foi um show de luzes e tanto. Mas e aí? Não me sinto diferente. – Algo muito importante. Agora preciso que pegue a muda de roupas que minha criada deixou ali e siga pela floresta – disse, apontando para uma trilha. – Mas eu... – Por favor, confie em mim. – Não se preocupe. Nos encontraremos novamente. A linda mulher segurou as mãos da garota em posição de reza. – É uma promessa. Então, caminhou até a água. A luz que emanava se intensificou tanto que Sayla apertou o olho para enxergar. De repente, um raio de luz vinda do céu atingiu a mulher, fazendo a garota cair no chão úmido. O corpo dela estava em chamas. A chama foi diminuindo, levando consigo sua silhueta. – MAS QUE DROGAAAA! – Ótimo! Ela desintegrou bem na minha frente... – disse, levando a mão à testa e suspirando. Sentada novamente na pedra onde havia despertado, pensou se esperaria por socorro ou seguiria o conselho de Ama. Sempre foi difícil para Sayla tomar decisões. Lembrou que sempre era Emily quem decidia melhor e imaginou o que ela faria. – Emily iria para a floresta! – disse para si mesma, antes de pegar a muda de roupas e partir.
Capítulo 1 – Deslocada.

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